agosto 22, 2008

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

Martinho tinha-lhe incutido o gosto pelo fado, ele sempre acreditara que Leonor era capaz, a mãe não, essa desconfiava... Uma menina universitária, com outra filosofia de vida, não ia abraçar o fado com facilidade... Enganara-se, a sua Leonor era uma fadista, e provara-o ali no Coliseu com toda a raça.
Martinho olhou os outros membros do júri e reparou que nos seus olhares, havia uma unânime aprovação no cantar desta menina. Que diabo! Era a pérola lá do Clube do Fado, Tinha mais que razões para ficar bem classificada. Tinha boa apresentação, cantava bem, uma dicção perfeita! Que lhe faltava?
O presidente do júri, Marcelo Couto, apenas disse entre dentes:
— Calma que ainda falta ouvir mais vozes, nada de precipitações...

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Chegara a vez da nossa 4ª fadista conhecida fazer a sua apresentação em palco, a Lucinda Cardoso. Vinha muito bonita, de cabelo puxado de lado onde prendia uma camélia vermelha, depois solto para trás. Nas orelhas, duas argolas de ouro que realçavam a sua pele morena, dando-lhe ares de atraente cigana. O vestido era preto de finas alças e decote generoso. Apenas um ombro coberto por um xaile cor de prata, de um tecido brilhante de longas franjas. De lábios sensuais, pintados quase do tom da flor que trazia.
Enfim... A Lucinda apresentou-se no Coliseu vestida a rigor, como uma fadista se deve apresentar para cantar.


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Já tenho visto mulheres cantar de calças de ganga, e até homens de fato de treino. É horroroso e uma grande falta de respeito para com o fado.
Não é preciso fato de gala nem trajes de cerimónia, aliás, o Nel Garcia descreve muito bem essa ideia no seu Fado, “Não venham com tretas”

Não venham com treta
Não é a gravata preta
Que faz um bom guitarrista
E mais me atrevo
Não é o xaile negro
Que faz a fadista

Concordo, porém tenho a certeza que este grande senhor do fado é da opinião que o decoro e o mínimo de respeito pelo fado são exigidos. O fado é quase uma religião, e como disse Carlos Conde:
O Lenço é nobre brasão
Que a tradição nos cedeu
Mas se o fado é oração
Não é de cabeça ao léu
Que se faz a confissão.


Antes de começar a cantar, a Lucinda benzeu-se...

Conheço muitas fadistas que o fazem, por exemplo: A Gina Santos, que tem pelo fado um respeito enorme, a Fernanda Moreira, que é uma das fadistas mais expressivas a cantar. A Lídia Maria que cantava com as mãos. A Aida Arménia, que tem uns gestos lindos e tão graciosos a cantar. O mestre Alfredo Guedes, depois o Lima Querido e hoje o Gervásio Miguel, com gestos que muitos podem não gostar, mas que demonstram a sua forma de sentir o que cantam. A Cátia Garcia, que parece que se abstém de tudo que a rodeia quando canta.
Quem nunca reparou, repare como é bonito, ver as mãos duma fadista quando canta, a forma como agarra as pontas do xaile, como entrelaça os dedos. Se o “sentir” se pode ver, é nas expressões no rosto de quem canta, mas também nas mãos.
Salvo o modo muito peculiar, da fadista Katia Guerreiro ao cantar de mãos atrás das costas, que deixa unicamente às expressões fantásticas que põe no rosto, a sua maneira de sentir.
Claro que os maneirismo, como os requebros ou o mover dos ombros e das ancas, demonstram formas de interiorizar os versos e sentir o canto.


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As guitarras de Eduardo Jorge e Alexandre Santos trinaram a introdução do Carriche, houve uma brevíssima paragem, e a voz de Lucinda ecoou na sala, no tom e no momento certo como um suspiro contido, quando um arrepio colectivo percorreu a assistência.
Era uma voz com raça, muito agradável de ouvir. O silêncio na sala era total e o júri concentrou-se mais ainda, levado por aquela melodia. A Lucinda também trazia uma letra de Olecram, na linda música do fado “Carriche”, com o título: “Passeias nos meus sonhos” que dizia assim:

Passas as noites comigo
A passear nos meus sonhos
Sozinha p’ra meu castigo
Eu passo os dias medonhos

Ai quem me dera poder
Nas horas que o dia tem
Dormir sonhar p’ra te ter
Preso a meus sonhos também

Tudo isto é a saudade
Do teu corpo dos teus beijos
Agora sei que é verdade
Sonhos traduzem desejos

O dia é meu inimigo
Só te tenho noite fora
De noite sonho contigo
Vem a manhã, vais-te embora

Quando acabou de cantar, como se estivesse ensaiado, ninguém no público aplaudiu, deixando ouvir os acordes das guitarras, fazerem o final deste fado tão bonito como é o Carriche.
Depois, bem depois... Foi a expulsão e o delírio, todo o Coliseu se levantou impulsionado por um sentimento de agrado por aquela voz, por aquele estilo de cantar o fado.

Pág.31 (continua)

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