agosto 12, 2008

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

A Lara

Naquela noite, a Associação Humanitária dos Bombeiros de Campanha, realizava no seu salão de festas uma noite de fado, cuja receita revertia a favor do Centro de Dia da Freguesia. Claro que a Lara como voluntária desse centro e na qualidade de representante da freguesia, no concurso de fados no Coliseu, tinha que estar presente.
Foi só com o filho, o marido não gostava dessas (manifestações de caridade), como lhe chama. Era mais dado ao futebol, que absorvia todos os seus tempos livres. Era capaz de ver jogos ininterruptamente de manhã à noite na Sport TV. Sabia discutir tudo sobre essa modalidade, era o chamado fanático da bola, capaz de esquecer a sua vida familiar em prol, não do desporto, mas do Porto como ele estupidamente diz, desprezando totalmente o conceito de desporto.
Assim, a desamparada Lara se encontrava naquela noite, quando o Marcelo apareceu nos camarins, disfarçando um desejo louco de beijar aquela boca com que tanto sonhava, mas... beijou-a muito familiarmente, olhando ás pessoas presente.
Corando ligeiramente, Lara apalpou no bolso a carta que escrevera para ele, mas que não tinha coragem de enviar pelo correio, encaminhou-o para um lugar mais recatado e levou a conversa para o fado (a carta mais uma vez ia esperar):
— Então vieste-me ouvir, para depois fazeres a tua critica lá no júri do Coliseu? Pensas que não sei que fazes parte?
— Sabes que não, eu sei muito bem como cantas e pudesse eu que ficavas em última, desclassificava-te para nunca mais cantares.
— O quê!? É esse o amor que me tens?
— É, é por te amar tanto que não queria que ninguém, a não ser eu, te ouvisse cantar. Que não te expusesses a uma plateia, assim bonita como és, que fosses bonita só para mim. Que não fosses mais um fado no fado, mas só o meu fado. Que ninguém te aplaudisse a não ser eu. Que ninguém te amasse a não ser eu. Que só eu tivesse os teus beijos, o teu calor, a tua ternura, o teu amor. Enfim, que só eu fosse o dono do teu destino para te poder adorar eternamente. Percebes agora, qual vai ser o meu tormento como júri do concurso, com essa tua teimosia de queres concorrer?
— Mas eu gosto tanto de cantar e talvez ainda não tenhas reparado, que esta é a única maneira de te dizer a cantar, o quanto gosto e sofro por ti.
— Menina Lara vai cantar a seguir – Alguém chamou
— Boa sorte minha querida, vou ficar na plateia para te ouvir, depois espero por ti para te levar a casa, queres?
— Está bem, procura o Matias que anda por aí.
A plateia explodiu em aplausos quando a Lara entrou. Os velhinhos que a adoravam, estavam eufóricos e aplaudiam com frenesim a sua diva.
Vinha de vestido negro, estilo camiseiro muito simples, com botões de cima a baixo e um decote em redondo. O xaile era branco com flores violetas bordadas, trazia-o pelos ombros.
Com um par de argolas nas orelhas e o cabelo apanhado a trás com um laço preto, a Lara estava linda como sempre…
— Boa noite meus queridos amigos! É um prazer estar aqui convosco. Vou cantar para todos vós, um fado que gosto muito e tem por título: “Na palma da minha mão”, é de autoria do poeta Olecram, numa música de Alfredo Marceneiro.
As guitarras trinaram a introdução do fado “Louco” e a voz de Lara entoou na sala:

Na palma da minha mão
Trago o destino marcado
E queira o mundo quer não
Hei-de vivê-lo a teu lado

Viver sem ti não consigo
Que o diga meu coração
E as linhas qu’andam comigo
Na palma da minha mão

Nos teus olhos me perdi
Tu és na vida meu fado
Desde a hora em que te vi
Trago o destino marcado

E se o destino assim quer
Contraria-lo é que não
Hei-de ser tua mulher
Está escrito em minha mão

Eu quero viver contigo
És a minha perdição
Trago o teu nome comigo
Na palma da minha mão

Ainda os acordes das guitarras não tinham terminado e já a sala explodia de novo em aplausos.
O Matias ao lado do tio-avô, batia palmas contagiado pelos demais.
Na mente de Marcelo só o desejo cabia, enorme como o amor secreto que tinha por Lara, aplaudia-a mecanicamente, extasiado pela beleza dela, admirado como ela era tão querida, por gente anónima que a respeitava pela sua capacidade de os compreender. Gente idosa, carente de ternura e atenção, para quem Lara tinha sempre uma palavra de carinho e coragem.
Esperou por ela no carro acompanhado por Matias, onde aproveitou para saber como iam as coisas em casa:
— Então o teu pai está porreiro?
— Foi ao café, ver na Sport TV o Real Madrid/Barcelona.
— Pois é, ele gosta mais de futebol, que de fado… Vem aí a tua mãe!
— Vamos? Que estavam a conversar os meus homens?
— Nada de importância – respondeu o Marcelo.
A viagem foi curta, mas deu para o perfume de Lara inundar o carro de um aroma suave mas perturbante ao mesmo tempo.
— Que cheirinho…Ele é que tem sorte, de te ter quando quer — sussurrou-lhe ou ouvido.
— Enganaste – disse ela – ele nunca me tem completamente…
Chegaram à porta de casa
— Um beijo Matias, porta-te bem! Não vás a correr, olha lá se cais!
— Posso te dar um beijo meu amor?
— Aqui não, pode estar gente a ver e não vais entrar porque é muito tarde e ele já... – nem acabou a frase, o marido de Lara veio à porta por ter ouvido um carro.
— Ò pai o tio Marcelo trouxe-nos
— Ainda bem, pensava que vinham sozinhos a esta hora – Saudou o tio da soleira, enquanto o Lara entrava.
— Boa noite Marcelo! E obrigado por me trazer a família sã e salva...
Marcelo nessa noite, não estava com vontade nenhuma de voltar para casa, ainda era cedo.
Como também não queria a companhia de ninguém, vagueou sem destino até parar Na praça do Infante.
Estacionou, fechou o carro e passeou a pé pela rua de S. João até à Ribeira, a noite estava agradável, sentou-se numa esplanada e pediu uma cerveja.
Num bar de porta aberta ali perto, alguém pôs uma música brasileira muito antiga, na caixa de música.

Fica comigo esta noite
E não te arrependerás
Lá fora o frio é um açoite
Calor aqui tu terás...

Pág.21 (continua)

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