agosto 05, 2008

À JANELA DO FADO (Livro)

(continuação)

Sente-se mais bonita que nunca e a Laurinha cabeleireira tem caprichado nos penteados. Já tem o vestido preto para a grande noite do fado e passa a vida a ensaiar na casa do casal Garcia, onde a Sãozinha tem sido uma grande ajuda com os seus conhecimentos e conselhos. Lá, tem uma espécie de aulas de canto e as correctas emendas, desde a dicção à divisão silábica, dadas pelo conhecedor e sempre atento, Nel Garcia.
Na fábrica de calçado onde trabalha, as colegas todas compraram bilhetes, para estarem presentes no Coliseu, são as suas fãs mais dilectas. Tem esperança num bom lugar. O seu amor até faz parte da organização!...
Não só por isso, mas porque tem consciência que canta bem e agora com mais alma e raça, depois de conhecer esse grande senhor do fado, que lhe trouxe a autoestima que há muito andava a precisar para o seu ego. Agora, quando se alinda como gosta de se alindar, sente uma certa vaidade, porque se ajeita para ele, que aprecia o seu corpo de mulher ardente, dá-lhe prazer quando ele elogia o seu vestido ou o seu penteado.
Á dias reparou que ele a mirava de longe de braços cruzados e com um ar estranho.
— Que foi meu amor, trago vestido algo que não te agrada?
— Não, estava a reparar como é lindo o teu andar, a elegância que pões nos passos que dás, pareces uma gazela.
A Lígia delira com estes piropos, nunca pensou que ainda houvessem homens assim.
Cada dia que passa mais o ama. Agora anda a cantar uma letra que adora, com o título de “Fadocanto”, numa música muito bonita composta pelo o Nel Garcia e que nos anos 80, foi gravada pelo saudoso Eduardo Alípio. Esse LP, que teve apresentação no Rivoli com pompa e circunstância, teve o Fernando Maurício como convidado especial. Foi ainda apadrinhado com a elegante presença de Gina Santos e América Rosa, com os poemas do disco, magistralmente interpretados por Sérgio Marques.
E a letra do “Fadocanto”, diz assim:


Trago fado no peito como alento
Junta das minhas coisas mais secretas
Dou-lhe a minha voz cantando ao vento
Palavras mais sentidas dos poetas

Foi fado o meu nascer ó minha mãe
Foi fado amores que tive e vi morrer
É fado o meu viver sem ter ninguém
Será fado o meu fim quando vier

Meu modo de cantar este meu jeito
Nasceu comigo numa tarde calma
Por isso trago fado no meu peito
E canto quando a dor m’invade a alma

É fado a minha voz que por encanto
Te leva esta mensagem plangente
É fado este sentir que te amo tanto
E dize-lo cantando a toda a gente.


A Leonor


O Chalé estava a abarrotar, naquela noite cantava a Leonor Cruz, uma revelação no fado.
Começou com o fado “Carriche”, e com a letra: “Sei quem é”, e dizia assim…

Eu sei quem me satisfaz
Os caprichos os desejos
É quem na vida me traz
Sempre colada a seus beijos

Também sei quem realiza
Meu louco fantasiar
É alguém que nem precisa
De hora para me amar

Eu sei quem tem a magia
De saber tudo que penso
É quem a mim me sacia
E me dá prazer imenso

Sei bem, mas quem diria!
Não passa duma ilusão
Dum fado que eu cantaria
Se não fosse a solidão.


A associação depositava grandes esperanças nesta voz, que além de cristalina, tinha a faculdade de fazer uns pianinhos deslumbrantes, que arrebatavam imensos aplausos no final.
Toda a plateia da sala, era gente acostumada a ouvir fado no máximo silêncio e apreciava uma voz castiça, com garra, daquelas vozes que nos arrepia ao ouvi-la.
Fazia tempo que uma fadista assim não aparecia no panorama do fado, desde o desaparecimento prematuro da Alma Rosa, cuja sua presença em qualquer casa de fado, era sinónimo de uma noite inesquecível. Dificilmente alguém cantava com tanta alma e raça. Aqueles que tiveram o privilégio de a ver e ouvir sabem do que falo. Era deslumbrante, altiva de porte indiscutivelmente feminino. Recordo de a ver entrar no “Kilumba” (casa de fado que pertencia à D. Aurora Verdades), no auge da sua carreira, de vestido vermelho e salto alto, cabelo cumprido, xaile preto e boca carmim, e o meu amigo Manuel Gonçalves comentar em surdina:
— Chegou “The Woman in Red” (A Mulher de Vermelho).
É como diz o fado:

A alma que a Alma tinha
Na sua voz donairosa
Era a raça que lhe vinha
De ser mais Alma que Rosa

Cantou o fado dos fados
O ”Menor” como ninguém
Cantou de olhos fechados
No ventre de sua mãe

Depois a vida enganou-a
Ao dar-lhe destino errado
Deu-lhe a glória e a coroa
E destino desgraçado

Tal qual o luar d’Agosto
Que encerra tanta beleza
Se o fado tivesse um rosto
Era o dela com certeza


Lizete, a mãe da Leonor, estava embevecida de vaidade pela filha, depois, pelo modo como o Martinho a apresentou aos sócios da associação. Sentia um pouquinho de vaidade nele, embora sabendo que não lhe pertencia de todo, mas… quem sabe! Talvez um dia, talvez…
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